top of page

Create Your First Project

Start adding your projects to your portfolio. Click on "Manage Projects" to get started

PÕE ME COMO UM SELO

Estou me despedindo de minha mãe. Não, não estou no hospital, nem no velório. Estamos vivas, nós duas. E com pesar observo seu corpo fenecendo. Há poucos dias suas mãos passaram a tremer. O andar está infinitamente mais lento. Que dia começou? Não sei dizer. Eu achava que não teriam fim meus embates com suas imposições, sua presunção. Tudo sempre do jeito dela, na hora que ela queria. Mas a impermanência venceu. A cabeça se curvou e os olhos não mais comandam, eles imploram.
Hoje ela me agradeceu o passeio. Em passos lentos perscrutamos um andar do shopping. Cada vitrine lembrava um interesse, uma necessidade. A vasilha para o macarrão, uma peça de louça, um sapato a ser admirado, uma camisola cara demais. Finalmente amadurecemos para o passeio socrático: admirar no mercado tudo aquilo que você não precisa para ser feliz.
Ela emagreceu absurdamente. Para onde foi a gulodice, a mania de comer sem fome? Fico agora com a interrogação: por que não conseguimos fazer isto mais vezes? Simplesmente conviver em clima de paz? Ter prazer na companhia uma da outra? É preciso chegar de cara com este muro de concreto que anuncia o fim da vida para dulcificar a relação? O muro está diante de mim também. Não é só para ela. Se ela finda, uma parte de mim vai junto. Estou me preparando para morrer também. Também tenho medo.
Enquanto não chegamos ao fim da linha tento construir um caminho florido. É uma tentativa de que ela não sofra. De que eu não sofra. Naturalizar o fim, enfeitando o que resta. Deus, dai-me sabedoria e força para conseguir alcançar o meu objetivo.

“Põe-me como um selo sobre o teu coração. As muitas águas não poderão sufocar este amor.”
in Salmos

bottom of page